É SEMPRE MAIS SINCERO PERGUNTAR DO QUE RESPONDER

terça-feira, 1 de junho de 2010

quimera rubra

Anotação mental: comprar um carro. Foda-se a camada de ozônio!
As delícias do transporte público. "Próxima parada: estação Gago Coutinho. Desembarque pelas portas dois e quatro. Dê preferência a pessoas idosas, gestantes e deficientes". Se encontrasse uma pessoa idosa, gestante e deficiente eu até saíria do ônibus se ela quisesse. Pobre do motorista que tem de ouvir essa gravação todo dia, o dia todo. Sem mencionar os insultos sempre a ele dirigidos, os diálogos banais dos passageiros, a algazara dos alunos do Estadual, pedintes, mães desesperadas e outros tantos atrativos proporcionados pela melhor rede de transporte público do hemisfério sul. No momento em que passam a mão na minha bunda. Olho para trás por instinto. Minha admiradora é um barbudo, bem feio ainda.
Perplexidade no bi-articulado. Uma indescritível criatura nele acaba de adentrar. Estatura elevada, corpo incomodamente magro. Pele acinzentada, cabelo crespo, igualmente cinza. Unhas amarelas, olhos vermelhos. "Como podem deixar um mendigo entrar no ônibus"? Não creio que a observação feita pela crente ao meu lado esteja totalmente correta, pois dificilmente um mendigo gastaria qualquer quantia com algo que não fosse álcool para a massa putrefata que chama de fígado. A indescritível criatura que acabo de descrever, deve ser apenas um pobre errante que espanca a mulher e deixa os filhos passarem fome em detrimento de sua sacra bebedeira cotidiana. O odor desagradável do indivíduo provoca um pequeno milagre, e eis que, às seis da tarde, surge espaço num ônibus curitibano. Todos tentam manter-se o maximamente afastados do indigente, o que aumenta ainda mais o aperto ao redor do clarão junto a ele. O cara que disse que dois corpos não podem ocupar um mesmo lugar no espaço não duraria meia hora por aqui, tendo de bancar a peça de Tetris, desesperando-se a cada parada do automóvel, que deixa vinte na estação e recebe sessenta, onde espaço nem para seis há mais.
Mais ao fundo explode uma acalorada discussão. Dois sexagenários vomitam impropérios ideológicos um ao outro, mesmo havendo entre eles cinco ou seis pessoas que pouco ou nada se interessam em política, e menos ainda na tempestade de perdigotos anciãos que os banham.
- Bando de ingratos! O Jaime pegou uma cidadezinha esquecida por Deus e transformou ela numa das cidades de melhor qualidade e vida do mundo!
- Só pra quem lê a Gazeta, porque o doutor Roberto pegou esse estado quebrado e...
- Pois o "doutor Roberto" de vocês que enfie a tal carta de Puebla no...
Soubesse que eram dois velhos discutindo política, jamais teria perdido meu tempo voltando minha atenção para a cena. À minha esquerda uma menina no colo da mãe também não parece apreciar a discussão, seu semblante externa bastante desconforto. O mais provável no entanto é que ela esteja apenas enjoada. Não seria a primeira vez que alguém vomitaria em mim em um ônibus.
Uma enorme mulher se levanta e livra o ônibus de seus cento e poucos quilos (cento e muitos provavelmente), não sem antes causar tumulto ao levar seu corpanzil até a porta. Passam-se dois ou tes minutos sem que alguém se arrisque a sentar-se no lugar agora vago (lugares, diga-se,pois a gigantsca mulher ocupava duas cadeiras), afinal para chegar aos lugares o digno cidadão teria que passar pelo homem, quem sabe, Deus nos proteja, encostar no maltrapilho. Após concluir que o lugar permaneceria vago (ao menos é o que penso, pois até onde me lembro não sou telepata), o indigente ousa sentir-se apto a ele mesmo ocupar a cadeira. Senta-se, o clarão que existira é tomado pelos passageiros, enquanto o acento à esquerda da criatura permanece sem ocupante.
Mais a frente um bebê chora desesperadamente. A mãe adolescente tenta acalmá-lo, mas precisa "cuidar" dos outros dois remelentos que já trouxe ao mundo. Talvez a criança não esteja feliz com a gritaria dos malditos alunos do Estadual, da maldita discussão dos velhos, ou com o cheiro das malditas mimosas que a velha atrás dela devora com embasbacante voracidade.
O ônibus para, saem cinco pessoas, entram cinquenta. Entre elas um homem numa cadeira de rodas segurando uma mochila preta. Eu já o vi antes, ouvi, aliás acho que ele me persegue.
"Desculpe interromper o silêncio de sua viagem", - eu nunca desculpo, mas ele sempe fala do mesmo jeito - "peço apenas um minuto da sua atenção". - eu também nunca dou o tal minuto - "Há cerca de quatro anos"... - Não suporto mais ouvir a trágica história do cara, não sei o nome dele, mas já ouvi tantas vezes sobre o tal acidente e de como ele encontrou Jesus, que é como se tivesse acontecido comigo. Dois rapazes perto de mim salvam minha vida (como se alguém nesse ônibus não estivesse em cima de mim), falam num tom tão elevado que, mesmo que eu quisesse continuar a ouvir a triste história do cadeirante, não conseguiria.
- Eu juro que era o "Oil Man" cara.
- Cê tá louco, o "Oil Man" não pega ônibus.
- Não só era o "Oil Man" como ele tava de terno.
- Imagina cara...
Porra de cidade maluca! Além de achar a coisa mais normal do mundo um cabeludo reluzente de tanga andando por aí de bicicleta, seus habitantes ainda perdem tempo com discussões esdrúxulas como essa. É claro que não era o "Oil Man", não o nosso "Oil".
Enfim o mala da cadeira de rodas parece próximo de encerrar sua explanação: "Eu trago comigo esse cd que contém dez hinos evangélicos de minha autoria". - não sei o que é menos atraente, se o fato de se tratarem de hinos evangélicos, ou o de serem da autoria dele. - "Este trabalho tem ótima procedência, foi gravado em Goiânia, com o apoio de meu amigo Welington de Camargo, irmão do cantor Zezé de Camargo e Luciano. E pelo cd, peço apenas a simbólica quantia de dez reais", - nisso concordamos, dez reais simbolizam uma porção de coisas. - "quantia que não condiz com a qualidade do trabalho". - Concordamos uma vez mais. E eis que chega o meu momento preferido do show, é quando ele faz uma pausa, e se dá conta de que ninguém pagará dez reais por seu abençoado cd. "Talvez eu os tenha pegado um pouco desprevenidos, nem sempre temos dez reais disponiveis numa hora dessas, sei como ninguém o quanto a vida não é fácil. Por isso aceito qualquer donativo, quanto o Senhor falar ao seu coração". - se deu mal, já nem sei a quanto tempo o "Senhor" nada diz ao meu coração, contudo sempre há duas ou três amáveis criaturas dispostas a dar-lhe algo. - "Deus o abençoe".
Minhas pernas doem tanto, e esse gordo a minha frente fede tanto. E o cotovelo da baixinha na minha barriga aperta tanto. Adoraria me sentar, mas tenho de dar preferência às pessoas idosas, gestantes e deficientes. Além do mais não há lugar disponível, nem em pé há lugar. Minto. O acento ao lado da abominável criatura, indigente, subumana, permanece vago. Ninguém se atreve a aproximar-se do miserável, e quem não gostaria de sentar-se após um desgraçado dia de trabalho? Eu gostaria mas... deixa pra lá, não falta muito para eu descer mesmo.
Pensando melhor, acho que vou sentar do lado do cara. Acabei de me dar conta de quais eram as libidinosas intenções do barbudo que passara a mão na minha bunda. Socorro Dalton! Minha carteira foi, não é mais.

3 comentários:

  1. Primeira! Sabe como me orgulho de vc, né? O texto é ótimo, apesar de eu não achar o vermelhão tão ruim assim...

    ResponderExcluir
  2. muuuuito bom o texto - leve, gostoso de ler, com humor... sardônico, o que é melhor!
    ai que saudades desses ônibus, sempre me diverti muito com essa fauna

    ResponderExcluir
  3. Vc tirou as palavras da minha boca(de uma maneira muito mais interesante e sem erros é claro!)principalmente depoi que eu fui morrar no itaperuçu!

    ResponderExcluir