É SEMPRE MAIS SINCERO PERGUNTAR DO QUE RESPONDER

domingo, 20 de junho de 2010

Singelo passeio dominical

Não era o programa dos meus sonhos, confesso, mas ao observar o encantamento no semblante de Virginia, percebi o quão coadjuvante eu era naquela tarde, e que o entojado ranzinza que tanto gosto de ser, deveria ficar trancafiado em meu interior na próxima hora. Que não passe de uma hora.
Levo o carrinho com dificuldade nas calçadas irregulares da capital social do Brasil, que aparentemente quer manter seus cidadãos cadeirantes em casa. Minha filha dormia, mas a cada novo tropicão seus olhos se abriam para em seguida se fecharem. Foi assim no trajeto entre minha casa e o Passeio Público, repetindo-se cinco ou seis vezes, em menos de dez minutos. No fim da descida de uma rampa há um desnível, que poderia ferir seriamente um cadeirante desavisado. Seria essa uma armadilha nazista para deficientes?
A poucos metros de nosso destino, o que era um ruído indecifrável pouco a pouco tornava-se mais nítido, e quando avisto a multidão a minha frente, já não restam dúvidas do que se trata tudo aquilo.
- Você não verificou se haveria jogo hoje?
- Por que a culpa é minha? Você também poderia ter se informado?
- Foi sua a idéia do passeio.
- É pela Virginia.
- É pela Virginia que não quero cruzar com esse bando.
- Relaxa amor, não é pro Passseio Público que eles estão indo.
Não relaxei, tampouco Virginia, que se resistira bravamente aos solavancos até ali, não conseguiu permanecer dormindo ante a balburdia dos civilizados torcedores. Pelo menos algo de positivo me ocorre, ela é nova demais para entender a poesia proferida pela nata da juventude curitibana. Não entende o que é dito, mas se assusta com a insanidade coletiva que presencia, e quando irrompe o pranto inevitável (inevitável por parte dela), minha esposa a pega no colo e, mesmo sem verbalizar essa impressão, estou certo de que me deu razão.
Quando finalmente adentramos o Passeio Público, os urros neandertais já voltaram a ser ruídos e a pequenina, acalentada pelo indefectivel colo da mãe, já pode retornar a seu meio de transporte. Há mais de um ano não ia ao Passeio Público, mas conheço bem esse cenário e definitivamente há algo de diferente nele. Os vendedores de pipoca, balão e algodão doce continuam os mesmos. O lago imundo, o odor desagradável e os esquizofrênicos a falarem sozinhos também não se abalam como marcas registradas do lugar. Mas falta algo...bom, o que é absolutamente banal para mim, é uma encantadora novidade para minha filha.Seus olhos brilhantes iam de um lado a outro, para cima e para baixo, deslumbrados com toda a gente, o verde e a fauna do lugar. Odores e sons novos também causavam saudável espanto na criança.
Sempre achei a fauna humana do Passeio Público mais interesssante do que a de penas, pêlos e escamas. Não que seja difícil superar os peixinhos inertes, a araras minúsculas e os macacos distantes que servem de pálida atração para um público que não prima pela exigência. Todavia, é realmente notável a diversidade de espécies dentro da espécie humana vista por aqui. Além dos já citados esquizofrênicos a discutirem consigo mesmos e os comerciantes, há os atletas, os mendigos, as prostitutas, os guardas municipais. Os mendigos com as prostitutas, os atletas com as prostitutas. Os guardas municipais aguardando o anoitecer para irem às prostitutas. Os velhinhos jogando gamão. Os casais fazendo do gramado motel gratuito. Os alunos do Estadual. Os alunos do Estadual fazendo do gramado motel gratuito. Os alunos do Estadual e as prostitutas (com elas o gramado não é gratuito). E falta algo... revisitando a fauna humana típica do Passeio público, passo a ter certeza de que algo não está certo hoje...
"Coiatidinha, com esse vento na cara", comenta a mulher de perfume estranho. Não me recordo de ter pedido conselhos sobre como criar minha filha a ela, porém creio que devo estar satisfeito dessa ser a primeira vez no dia em que ouvimos algo dessa espécie. Normalmente assim que saímos do predio, já começamos a ouvir as valiosas e embasadas opiniões de nossas atarefadas vizinhas. "A senhora deveria cobrar por esses conselhos, sua sabedoria é uma dádiva, e como tal deve ser valorizada". Respondi à mulher, que pelo semblante não compreendeu o que disse exatamente, mas deduziu o "cuide da sua vida" subentendivel.
Começo a cantarolar Raul: "eu devia estar contente porque eu tenho um emprego, sou um dito cidadão respeitado e ganho quatro mil cruzeiros por mês". Entretanto, antes de chegar minha parte favorita, o "eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido o domingo, para ir com a família no jardim zoológico dar pipoca aos macacos", sou atingido, como que por um raio, pela lembrança, enfim, do que está faltando nesa tarde de domingo.
- Onde estão os calçudos?
Os termos "calçudo" e "vileiro" dizem respeito a uma raça de criaturas que, embora jovens na idade, parecem ter a mesma disposição para mover seus corpos do que um idoso em estado terminal. São caracterizados por penteados ridículos, e roupas largas de veludo, bastante coloridas. Seus Habitats naturais são shoppings, praças, terminais de ônibus e quaisquer outros lugares onde possam permanecer por intermináveis horas sem qualquer coisa fazer. É um grupo de inestimável valor para nossa sociedade.
- Devem estar em casa com medo do Matador de vileiros.
- Matador de vileiros?
- Nossa amor, em que planeta você vive? Você nunca ouviu falar dele?
- Não, do que se trata?
- De um cara que mata vileiros. Pensei que fosse auto explicativo.
- Sério? Que interessante!
- Não é interessante, é assustador.
- Assustador, concordo, mas igualmente interessante. Quantos ele já matou?
- Não sei, mas foi uma porção.
Silencio por alguns instantes. Refletindo sobre o assunto, vou para longe. Como que lendo minha mente, minha esposa questiona:
- Você acha que eles merecem isso, né?
- Não, não disse isso...
- Mas pensa, conheço você. Amor, vileiros não são criminosos.
- Ainda.
- Que seja, mas só poderão ser punidos como criminosos quando forem criminosos.
- É claro, claro... - não creio que tenha conseguido esconder meu desapontamento ao me dar conta de que ela estava certa. - ... é que... sei lá, acho que seria bom um justiceiro, um cara que limpasse as ruas.
- Mas não de vileiros.
- Vileiros fazem arrastões, assaltos e vandalismo.
- Não todos, e ao fazerem isso, devem ser chamados de criminosos, não de calçudos. - não respondo a essa observação, ela prossegue - Só não quero que alguém seja morto pela forma de se vestir.
Minha resposta imediata é apenas um suspiro. Odeio não ter razão, e para reconhecer isso, leva certo tempo.
- Você tem razão.
- Não me convenceu muito.
- Como eu já disse, queria alguém para fazer o trabalho que a polícia deveria fazer.
- E olha só, o cara desenha com uma faca um M e um V, no abdomen das vítimas. Ele é louco de pedra.
- Ou quer criar uma marca, mandar um aviso.
- Pô, você ainda está defendendo o cara! Quer saber? - retira Virginia do carrinho e, com ela nos braços, afasta-se de mim em direção a grade das ratazanas - Olha filha, as Cutias.
É um mundo estranho. Um mundo de estranhos auto-destrutivos, que não destroem apenas a si mesmos. De cabeças de bagre que se juntam em grupos para levar suas mensagens vazias ao mundo. De egoístas, acima de tudo de egoístas. De tantas outras maçãs podres, que tornam o mérito genuíno exceção, dentro de uma regra repugnante. E é para esse mundo que trouxemos Virgínia. Pensar que fazer surgir um cidadão valorozo seria uma forma de dar uma nova chance à espécie, e que esse poderia mudar esse estado das coisas, não me convence agora, soa utópico, e eu já estou velho demais para utopias... infelizmente.
Tendo minha mente tomada por funestas reflexões, observo minha esposa caminhar com minha filha no colo. Sinto-me frágil, impotente. Inútil. Não posso vigiá-las o tempo todo, e mesmo que pudesse, não garantiria que a loucura cotidiana jamais as atingisse. Muitos associam paternidade com responsabilidade, mas às vezes me sinto tremendamente irresponsável por ter me tornado pai num mundo que tanto foge ao meu controle, a qualquer controle.O que aquele maltrapilho tanto olha para elas? E aqueles dois ali, estão chegando perto demais.
Me aproximo delas questionando se sou paranóico ou previdente. Ainda não tenho certeza se gosto ou desgosto do tal Matador de vileiros, ele até me assusta, mas o que me apavora realmente, é esse maldito mundo estranho que provoca a sua existência.
"Ah mas que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco..."

3 comentários:

  1. Esse foi meu preferido até agora...Não sei pq me identifiquei muito com as personagens...Hum... Pior que o Passeio é bem assim mesmo...Aff...

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  2. Muito bom o texto, me fez sentir saudade do passeio publico dos meus tempos de criança, nunca mais estive lá, apesar do perigo real que nos cerca acho que é importante manter um local assim e olhar o lado belo com os olhos curiosos de uma criança.

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  3. Virginia ainda tem muito para ver, ouvir e sentir no Passeio Público - que o espaço é democrático. Vai fazer parte daquela fauna humana que aparece por lá, como eu, você e todos que querem passear e ver os dois tipos de fauna disponíveis. A diferença é que gente como eu e você não interagimos com nossos semelhantes no Passeio. Virginia vai interagir quando for maior e brincar com outras crianças e os bichos inofensivos que puder chegar perto. Depois que crescer um pouco, deve ficar como nós, seletiva. E, como nós, vai se divertir menos no P. Público.

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